A vizinha de pele branca tinha cabelos negros de origem africana. A mancha de sol no rosto caía-lhe como um charme, ao qual também faziam-lhe parte: os lábios carnudos, os seios fartos e a bunda ausente. Morava num bairro periférico. Não trabalhava, não namorava, mas, mantinha uma vaidade de quem o fizesse. Quando chegasse o sábado, preparava para assentar o seu cabelo de fuá. Pintava as unhas dos seus dedos cabeçudos e punha-se a sentar no portão da sua casa. Objetivo? Ver a vida passar. Sempre rodeada de amigos, os mesmos vizinhos. Gostava de fumar hollywood e beber brahma. O sorriso largo mostrava os dentes brancos, bem tratados. Diziam as más línguas, que era solteirona e virgem. Nada a se provar.
Duas casas depois da sua, morava uma menina branca, franzina, também, de cabelos de fuá. A menina era criada pela avó que não a deixava sair para muito longe. Ficava sentada no portão de sua casa, observando a felicidade da vizinha envolta aos amigos no portão. E, sempre se perguntando: "o que tanto riam eles por ali?". A avó da menina franzina tinha uma relação de mãe e filha com a vizinha. Durante longos anos, todo aniversário da vizinha, a avó da menina franzina lhe dava um ouro por estima. A avó, que também gostava de se envaidar, sempre pedia à vizinha que a ajudasse com os cabelos loiros pintados. A vizinha prendia-lhe os bobs como se fosse uma profissional. No final, recebia um maço de cigarros hollywood como pagamento (ação muito comum para a época).
Os anos passam, a menina franzina, de cabelo de fuá, está com doze. Seu cabelo parece ter piorado com a chegada da puberdade. Quase não se via o rosto delgado, escondido debaixo da cabeleira. Bom cabelo, não fazia à mocinha. A avó, preocupada com aquilo, decide ajudar. Pretendia chamar a vizinha. Touca seria a melhor saída. Sim, aquelas toucas de meia que rodeavam a cabeça. Sabendo da boa vontade da vizinha, que não era cabeleireira, inicia-se o processo de restauração capilar. A menina, ao adentrar a casa da vizinha, reclamava, fazia birra. Sentia-se humilhada.
Com os olhos inchados de chorar, a menina, que já está mocinha, implora para que a vizinha não coloque o adorno. “por favor, fale com a minha avó! Convença-a de que isso vai me deixar feia. Não quero passar vergonha. A rua vai rir de mim”. E a vizinha, morrendo de dó da pobre menina, ri da sua astúcia e responde: “não posso! Sua avó vai brigar comigo. Tente entender...”. O sol gritava no céu daqueles dias de pavor. Somente a sombrinha rosa com detalhes florais poderia esconder o feito da submissão.
E, assim, segue o triângulo doloroso entre a avó, a menina e a vizinha por longos e longos anos de cabelos longos. A menina moça foi crescendo. Descobriu a vida. Agora, anda por outros caminhos, conhece o mundo. Não precisa mais fazer a touca. Freqüenta salão de beleza. Aprendeu a beber e a fumar. Virou mulher. Uma jovem mulher. Saía todo final de semana. E, todo final de semana, quando voltava, a vizinha estava lá, no mesmo lugar. Sentada à frente do portão da casa, com os cabelos feitos e as unhas pintadas. Fumando seu hollywood, tomando sua brahma, batendo papo e rindo com os amigos vizinhos.
A jovem mulher, que sempre se perguntava o que a vizinha via naquele mundinho, decidiu se aproximar. Sentou, conversou, bebeu, fumou. E, desde então, nunca mais parou de freqüentar aquele portão. Sentiu um bem estar incondicional em fazer parte daquela roda. Diferente dos lugares que frequentava e da vida que a avó lhe obrigava. Pessoas simples, novas experiências, assuntos diversos. Gente de todas as idades: jovens, velhos, crianças e adolescentes. Mas, o que tinha aquele portão de diferente? Falava-se de tudo. Fazia-se amigo oculto. Em épocas de copa do mundo, enfeitava-se a rua do início ao fim. A quermesse da praça proporcinava o verbo encontrar.
Os encontros no portão da casa da vizinha se intensificam. Passam a ser às sextas e aos sábados. Tinha gente de todos os lados. Da rua de baixo, da rua de cima. A jovem mulher continuava saindo para os seus feitos amorosos e divertidos. Mas, não deixava de passar por lá. A amizade entre elas começa a vigorar. Se tornaram inseparáveis. A jovem mulher insistia em apresentar o mundo à vizinha. O mundo que ela conhecia fora daquele portão. Mas, a vizinha não gosta de andar de ônibus. O jeito era arrumar algum conhecido que, de carro, era provido. Eis que encontram um amigo que, tão disposto quanto elas, se prontificou a formar trio. Mas, de nada adiantou. A vizinha não sentia a mesma felicidade que tinha naquele portão.
A amizade passa a incomodar a avó que, de zelo pela vizinha, passou a brigar. Era ciúme doentio. Mas, a neta não se importava. Afinal, a sua avó haveria de ter ciúmes de todas as suas amigas futuras. Era amizade! Pura e sincera. Dessas que duram para sempre. Dessas que acontecem sem explicação. Algo de outro mundo. Quando enraivecidas pelas verdades jogadas à cara, brigavam como duas irmãs. Ficavam “de mal”. Quando retornavam, riam de tudo que acontecia. A amizade tomou tamanha proporção que, aqueles amigos vizinhos se foram, aos poucos. Uns casaram, outros passaram no vestibular ou, simplesmente, sumiram.
Chegava a vez da jovem mulher que, aos 25, depois de passar por vários tropeços amorosos, encontra o seu futuro marido. Os encontros com a vizinha passaram a ser raros. O macarrão talharim, regado ao molho de carne com queijo, feito pela mãe da vizinha, por vezes, ficava preparado, esperando a jovem mulher chegar. Mas, a jovem mulher já não teria mais tempo de dedicar. Casa-se. Muda-se de cidade. A distância fica cada vez mais distante. Telefonam-se. Até que o marido da jovem mulher volta para a cidade e, a amizade, poderia retomar.
Mas, uma visita à casa da vizinha a assustara. Estava mais magra. Os dentes brancos já não eram tão brancos e tão perfeitos como dantes. A mulher percebera que lhe faltava a vaidade. Será a diferença de idade? O portão estava fechado. Os amigos já não eram os mesmos tantos. O infortúnio lhe preparava a cama. A irmã da vizinha perde os movimentos do lado esquerdo. O sobrinho leva um tiro, enquanto reza, e fica paraplégico aos 25. Era muita tragédia para uma pessoa só agüentar. Amofinou-se. Deixou-se levar. A doença comia-lhe o fígado, o útero e o intestino. Médico algum iria lhe salvar. Não mais se alimentava. Não mais bebia a brahma gelada. Sem nunca ter namorado, morria de paixão, aos 50, em frente ao seu portão.
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